Mudanças Climáticas e vulnerabilidade das mulheres

Por: Angélica Aparecida de Souza

Ambiafro
6 min readMar 31, 2022
Foto: Honório Moreira // oimparcial.com.br

“Seu Boiadeiro por aqui choveu
Seu Boiadeiro por aqui choveu
Choveu, choveu, relampejou
Foi tanta água que meu boi nadou”[…]
(Ponto de Boiadeiro)

A percepção que possamos ter sobre o tempo das coisas, muitas vezes, nos faz ter noção do que é certo ou errado. Na natureza tudo tem seu tempo, tempo de cuidar, de crescer, e de tirar. Por isso precisamos pensar nas necessidades de cuidado com a natureza e como utilizamos o que vem dela — essas questões, nos levam a uma reflexão que é apontada por nossos ancestrais e se acumula nos dias atuais com as mudanças no clima.

Quando éramos crianças a gente sempre escutava as frases que nossas/os mais velhas/os diziam sobre determinada época do ano estar fazendo mais calor do que em anos anteriores, ou sobre chuvas frequentes em meses que eram de muito sol. E as respostas de outras pessoas enfatizavam — o tempo está mudado mesmo; lá no açude, tá tudo seco em uma época dessas; olha o rio secou bastante; ontem à noite choveu muito que a lateral da casa da vizinha desceu toda.

Recentemente, no término de 2021, considerável parcela da população baiana sofreu com chuvas intensas, um evento que não acontecia desde os anos 90, quando aconteceram chuvas na Bahia que ocasionaram enchentes constantes, quebras de barragens e derrubadas de pontes, além de vários desabrigados. No início de 2022 pudemos presenciar o mesmo fenômeno de chuvas intensas — ZACS — Zonas de Convergência do Atlântico Sul, também conhecidos como “ Rios Voadores”, que ocorreram no Sul da Bahia e se deslocaram para o Norte de Minas Gerais, chegando na região de Petrópolis e regiões metropolitanas de São Paulo. Segundo fontes governamentais, mais de 900 mil pessoas foram afetadas — perderam casas, comércios, a estrutura das cidades foram danificadas sem contar as perdas humanas decorrentes do desastre.

Porém, estes não são os únicos efeitos que causam preocupações em razão das mudanças climáticas. Outra demanda que acomete com frequência esta região são os períodos de maré seca. Estes condicionam e impactam a produção de mariscos e outros frutos do mar, acarretando uma mudança na dinâmica da comunidade — principalmente nas mulheres marisqueiras. Essas comunidades tradicionais vivem da pesca de subsistência e da mariscagem –papel das mulheres para o desenvolvimento do trabalho de catar marisco, tem grande importância e este tem relação de respeito com o tempo da natureza, envolve trabalho em grupo e a relação de sobrevivência das marisqueiras e seus familiares — as mudanças nos horários da maré acarretam o tempo de trabalho de mariscagem e como isso impacta, também, a vulnerabilidade da saúde das mulheres. O trabalho é feito em horários matinais e vespertinos, dependendo muito da maré baixa ou alta, outra situação que acontece muito é o tempo em contato com água — alguns estudos indicam que mulheres que mariscam têm um índice alto de problemas uterinos e nos ovários, tornando, assim, um problema de saúde pública. Em decorrência das mudanças climáticas, as comunidades tradicionais pesqueiras sofrem com a escassez de peixes da época, e de outras fontes de subsistência como a exemplo do marisco. Essas mudanças climáticas que são causadas pelo ser humano provocam perdas para as pessoas e ecossistemas, sendo bem mais agravantes nas comunidades tradicionais.

Foto por Fábio Teixeira // domtotal.com

Os índices apontam que moradores de comunidades tradicionais morrem 15 vezes mais em decorrência de eventos climáticos extremos. O relatório climático da ONU (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas — IPCC — publicado em 09/08/2021) indica que o número de pessoas expostas à secas e enchentes em cidades deve dobrar até 2030 — sabe-se que os eventos climáticos diminuem o crescimento econômico ameaçando a segurança alimentar e hídrica.

Podemos visualizar que a relação das mudanças climáticas acarreta de forma profunda as dinâmicas das populações e ainda mais das comunidades tradicionais que sofrem à margem das políticas públicas contribuindo com o racismo e as desigualdades, influenciando práticas sociais de povos e comunidades tradicionais. As vulnerabilidades que surgem em decorrência das mudanças climáticas afetam de forma recorrente populações negras e indígenas, observando que essas populações, em sua maioria, não têm acesso a saúde, infraestrutura, educação e lazer, caracterizando assim, o que chamamos de injustiça climática.

A população negra, em particular, a comunidade tradicional quilombola sofre com a exclusão baseada em nossa identidade racial. Na maioria das vezes, as mulheres negras têm passado dificuldades físicas e emocionais que estão relacionadas ao mundo do trabalho e à qualidade do trabalho desenvolvido, seja com a pesca, mariscagem, agricultura familiar. Percebemos que nesses territórios de identidade a dinâmica enfatizada é perpetuada através do tempo por meio de ensinamentos que seguem por gerações — na feitura da farinha, na produção de dendê, no plantio de hortaliças etc. Todos esses sistemas são enfatizados por sua maioria na produção realizada por mulheres, e tais dinâmicas são afetadas na produção que acarreta na vulnerabilidade de mulheres, mães de famílias, crianças e adolescentes que são pertencentes do território e têm suas vidas modificadas por mudanças severas no clima.

As mulheres e suas comunidades têm uma relação de pertencimento, que enfatiza a dinâmica de toda a população, sendo na zona rural, em assentamentos, comunidades indígenas, ribeirinhas o que prevalece é a estrutura de como esse movimento é organizado. Com as mudanças climáticas e os impactos em ecossistemas e na forma de trabalho e sobrevivência de mulheres e suas famílias, pensar formas de construir um diálogo junto às comunidades é o que prevalece. Nessa dinâmica de construção, podemos visualizar que as mudanças climáticas e as trajetórias dessas mulheres são colocadas em perspectiva justamente pela condição de vulnerabilidade que mulheres e crianças se encontram. Muitas vezes, essas mulheres são mães e precisam desenvolver outras maneiras de sobrevivência por meio de um ecossistema modificado pelo clima, pela escassez de água, pelo lixo depositado da zona urbana em locais próximos às comunidades. Esses fatores afetam o cotidiano da população, fazendo com que mulheres se tornem mais vulneráveis pelo histórico de desassistência que ocorre pelo recorte de gênero na sociedade.

As mudanças climáticas nos trazem muitos questionamentos: do que podemos evitar; de como agir em sociedade; mas descarta os pequenos centros, as comunidades tradicionais que estão envolvidas em formas de subsistência que são baseadas nos movimentos da natureza e que dependem frequentemente desse modelo para educar seus filhos, aprender com os que vieram antes de nós e repensar as possibilidades de cuidado com meio ambiente de uma forma sustentável, seja por meio da pesca, do plantio, do turismo de base comunitária, da produção de frutas da época. Precisamos nos atentar às formas de cuidado e como os grandes negócios vêm destruindo florestas, manguezais, beiras de rios, nascentes, praias e parques ecológicos, colocando em risco vidas tradicionais que sobrevivem desses espaços e têm uma relação de resistência e cuidado ancestral.

Referências

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/chuvas-na-bahia-ja-deixam-20-mortos-mais-de-470-mil-pessoas-foram-afetadas/
https://g1.globo.com/google/amp/ba/bahia/noticia/2022/01/07/numero-de-pessoas-afetadas-pela-chuva-na-bahia-passa-dos-850-mil.ghtml
https://www.agenciaminas.mg.gov.br/noticia/chuvas-fortes-dos-ultimos-meses-deixam-420-cidades-mineiras-em-situacao-de-emergencia
https://www.ecodebate.com.br/2021/08/11/o-relatorio-do-ipcc-e-a-gravidade-da-crise-climatica/
http://www.ppghis.uneb.br/wp-content/uploads/2019/04/Rosana-Costa-Gomes.pdf
https://repositorio.ufba.br/handle/ri/18252
https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/2545

Angélica Aparecida de Souza — “Sou Baiana, Candomblecista, Cientista Social — Especialista em Ensino de Sociologia — Pesquisadora Ativista — Coletivo Angela Davis/UFRB. Atualmente pesquiso Relações Raciais, identidades culturais, socialização escolar , estética negra.

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Equidade, diversidade e sutentabilidade. linktr.ee/ambiafro

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